terça-feira, março 27, 2007

CRIANCINHAS

A criancinha quer Playstation. A gente dá.

A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.

A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.

A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.

A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.

A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.

A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.

Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher.

Desperta.

É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.

A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.

A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.

A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».

Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal. Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».

A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».

Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha? Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos congressos e debates para nos entretermos.

http://visao.clix.pt/default.asp?CpContentId=332941 por Miguel Carvalho

3 comentários:

Mafalda Soares disse...

Este artigo é incontestável. O mundo extravasa criancinhas destas aos milhões. Criancinhas que vivem segundo as aparências e esquecem o que realmente conta.
E depois? Bem, nunca passam de criancinhas...
A falta de educação cresce abruptamente e os pais, que nunca disseram um 'não' ao(à) menino(a), julgam-se grandes pedagogos afirmando que "quem sabe do meu filho sou eu". Que hipocrisia...

Mas os nossos meninos não vão ser assim =D

Beijo @LY@

Anónimo disse...

a liberdade, a democracia, os novos metodos de ensino, o marketing, a televisao, a playstation, os computadores, os familiares, as prendas fora de epoca, os telemoveis, os centros comerciais, a floribella, os morangos

o quero, posso e mando!

diz a mãe ao Pai : faz lhe a vontade senão ele ainda acaba na má vida.

Se eu não pagar a renda tiram me a casa, e se eu mal tratar, ou bem tratar de demais os putos, o que me acontece? neste país de merda, não me acontece nada.

isa disse...

agrada-me o "acabar num festim de chocolate" e se fazes favor deixa a criancinha ver a tia Isa e a mamã na TV, caso contrário é sinal que o caso tá mal parado lol

O texto está realmente muito bem escrito e infelizmente consigo estabelecer relação À realidade de dois casos na minha família.. só que como ele diz as "criancinhas" já têm 20 e muitos...

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